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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

ATIVIDADES LEITURA E INTERPRETAÇÃO TEXTUAL GÊNERO CRÔNICA COM GABARITO

LEIA O TEXTO A SEGUIR:


Fonte: Jótah


NA ESCOLA


Democrata é Dona Amarílis, professora na escola pública de uma rua que não vou contar, e mesmo o nome de Dona Amarílis é inventado, mas o caso aconteceu.

Ela se virou para os alunos, no começo da aula, e falou assim:

- Hoje eu preciso que vocês resolvam uma coisa muito importante. Pode ser?

- Pode - a garotada respondeu em coro.

- Muito bem. Será uma espécie de plebiscito. A palavra é complicada, mas a coisa é simples. Cada um dá sua opinião, a gente soma as opiniões e a maioria é que decide. Na hora de dar opinião, não falem todos de uma vez só, porque senão vai ser muito difícil eu saber o que é que cada um pensa. Está bem?

- Está - respondeu o coro, interessadíssimo.

- Ótimo. Então, vamos ao assunto. Surgiu um movimento para as professoras poderem usar calça comprida nas escolas. O governo disse que deixa, a diretora também, mas no meu caso eu não quero decidir por mim. O que se faz na sala de aula deve ser de acordo com os alunos. Para todos ficarem satisfeitos e um não dizer que não gostou. Assim não tem problema. Bem, vou começar pelo Renato Carlos. Renato Carlos, você acha que sua professora deve ou não deve usar calça comprida na escola?

- Acho que não deve - respondeu, baixando os olhos.

- Por quê?

- Porque é melhor não usar.

- E por que é melhor não usar?

- Porque minissaia é muito mais bacana.

- Perfeito. Um voto contra. Marilena, me faz um favor, anote aí no seu caderno os votos contra. E você, Leonardo, por obséquio, anote os votos a favor, se houver. Agora quem vai responder é Inesita. - Claro que deve, professora. Lá fora a senhora usa, por que vai deixar de usar aqui dentro?

- Mas aqui dentro é outro lugar.

- É a mesma coisa. A senhora tem uma roxo-cardeal que eu vi outro dia na rua, aquela é bárbara.

- Um a favor. E você, Aparecida?

- Posso ser sincera, professora?

- Pode, não. Deve.

- Eu, se fosse a senhora, não usava.

- Por quê?

- O quadril, sabe? Fica meio saliente…

- Obrigada, Aparecida. Você anotou, Marilena? Agora você, Edmundo.

- Eu acho que Aparecida não tem razão, professora. A senhora deve ficar muito bacana de calça comprida. O seu quadril é certinho.

- Meu quadril não está em votação. Edmundo. A calça, sim. Você é contra ou a favor da calça?

- A favor 100%.

- Você, Peter?

- Pra mim tanto faz.

- Não tem preferência?

- Sei lá. Negócio de mulher eu não me meto, professora.

- Uma abstenção. Mônica, você fica encarregada de tomar nota dos votos iguais ao de Peter: nem contra nem a favor, antes pelo contrário.

Assim iam todos votando, como se escolhessem o Presidente da República, tarefa que talvez, quem sabe? no futuro sejam chamados a desempenhar. Com a maior circunspeção. A vez de Rinalda:

- Ah, cada um na sua.

- Na sua, como?

- Eu na minha, a senhora na sua, cada um na dele, entende?

- Explique melhor.

- Negócio seguinte. Se a senhora quer vir de pantalona, venha. Eu quero vir de mídi, de máxi, de short, venho. Uniforme é papo-furado.

- Você foi além da pergunta, Rinalda. Então é a favor?

- Evidente. Cada um curtindo à vontade.

- Legal! - exclamou Jorgito. - Uniforme está superado, professora. a senhora vem de calça comprida, e a gente aparecemos de qualquer jeito.

- Não pode - refutou Gilberto. - Vira bagunça. Lá em casa ninguém anda de pijama ou de camisa aberta na sala. A gente tem de respeitar o uniforme.

Respeita, não respeita, a discussão esquentou, Dona Amarílis pedia ordem, ordem, assim não é possível, mas os grupos se haviam extremado, falavam todos ao mesmo tempo, ninguém se fazia ouvir, pelo que, com quatro votos a favor de calça comprida, dois contra, e um tanto-faz, e antes que fosse decretada por maioria absoluta a abolição do uniforme escolar, a professora achou prudente declarar encerrado o plebiscito, e passou à lição de História do Brasil.


Carlos Drummond de Andrade. Na escola. Crônicas. 14. ed. São Paulo: Ática, 1995.




POR DENTRO DO TEXTO


1. O texto que você acabou de ler conta uma história.


a) Quem são as personagens?


b) No geral, o que as personagens estão fazendo?


c) Onde ocorrem os fatos?


2. Que fatos ocorridos no texto podem acontecer no dia a dia de uma sala de aula?


3. Você entendeu a explicação de Dona Amarílis sobre plebiscito? Explique, então, do que se trata.


4. Dona Amarílis é caracterizada no texto como uma pessoa democrata. Que atitude dela prova que essa caracterização está correta?


5. Explique o que a professora quis dizer com as seguintes palavras: “Você foi além da pergunta, Rinalda.”


6. Inesita foi contra ou a favor o uso da calça comprida? Que argumento ela usou para justificar sua opinião?


7. Por que Renato Carlos e Aparecida votaram contra? Que argumento cada um deles usou?


8. As opiniões dos alunos, manifestadas no plebiscito, giram em torno de conservadorismo, inovação, liberdade e estética. Diante disso, relacione a 2ª coluna de acordo com a primeira.


(A)

avançado(a)

(     )

Inesita

(B)

inovador(a)

(     )

Gilberto

(C)

indiferente

(     )

Peter

(D)

conservador(a)

(     )

Aparecida e Edmundo

(E)

preocupado(a) com o lado estético

(     )

Renato e Rinalda


9. O que aconteceu quando os alunos quiseram discutir sobre o próprio problema, ou seja, sobre o uso do uniforme escolar?


10. Em relação às características do gênero crônica, assinale a alternativa INCORRETA.


(A) O texto tem a intenção de divertir o leitor.

(B) O texto tem a intenção de fazer o leitor pensar.

(C) O texto tem a intenção de defender uma opinião.

(D) Trata-se de um texto que narra um fato do cotidiano.



FONTE: Todos os créditos reservados aos autores: OLIVEIRA, Tania Amaral; SILVA, Elizabeth Gavioli de Oliveira; OLIVEIRA SILVA, Cícero de; ARAÚJO, Lucy Aparecida Melo. Tecendo linguagens: língua portuguesa. 3. ed. São Paulo: IBEP, 2012. (Adaptado)


 









GABARITO


1. a) A professora e os alunos.

b) As personagens estão discutindo sobre um assunto proposto.

c) Os fatos ocorrem na sala de aula, apesar de haver alusões à rua, à casa.

2. Muitos deles: um debate sobre um tema polêmico, a diferença de opinião, a votação etc.

3. Plebiscito é a participação popular (democrática) numa decisão ou escolha.

4. Ela é caracterizada como democrata, logo no primeiro parágrafo. Ela conduz democraticamente toda a discussão em torno do assunto em pauta.

5. Quer dizer que ela emitiu opinião sobre algo que não estava em votação.

6. Ela foi a favor. “Lá fora a senhora usa, por que vai deixar de usar aqui dentro?”

7. Renato Carlos acha a minissaia mais bacana. Aparecida é contra porque a calça deixa os quadris salientes.

8. A sequência correta de cima para baixo é: B, D, C, E, A.

9. A professora encerrou rapidamente a votação e retomou a aula, antes que nova discussão pudesse se estender.

10. C


domingo, 18 de agosto de 2013

LEITURA: CONTO A NOVA CALIFÓRNIA - LIMA BARRETO

Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do Correio pudera apenas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava o desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...
Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.
— Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.
Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção: um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como os da farmácia — um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.
O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso.
Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um "credo" em voz baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma população.
Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário Bastos concluirá que o desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.
Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também, porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou tranquilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse de uma silenciosa admiração a pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.
De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante da penetrante melancolia do crespúsculo, todos se- descobriam e não era raro que às "boas noites" acrescentassem "doutor". E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrer e morrer.
Na verdade, era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas, de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia dos trópicos.
Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se dos escravos que os cercavam...
Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e não o era unicamente porque havia alguém que não tinha em grande conta os méritos do novo habitante.
Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o sábio. "Vocês hão de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um ladrão fugido do Rio."
A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão Pelino, e mesmo quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de dizer: "Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: 'um outro', 'de resto'..." E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma cousa amarga.
Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino, que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...
Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Candido de Figueiredo ou o Castro Lopes, e de ter passado mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a dar dous dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino avaro de palavras, limitando-se tão-somente a ouvir. Quando, porém, dos lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha e emendava. "Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que..." Por aí, o mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica: "Não diga 'asseguro' Senhor Bernardes; em português é garanto."
E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por uma outra. Por essas e outras, houve muitos palestradores que se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava o seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater aquele rival, que surgia tão inopinadamente.
Foram vãs as suas palavras e a sua eloquência: não só Raimundo Flamel pagava em dia as suas contas, como era generoso—pai da pobreza—e o farmacêutico vira numa revista de específicos seu nome citado como químico de valor.
Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse quem fosse e, certo dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e atendeu.
Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse:
—Doutor, seja bem-vindo.
O sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de respeito do farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docemente, olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu:
— Desejava falar-lhe em particular, Senhor Bastos.
O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao homem, cujo nome corria mundo e de quem os jornais falavam com tão acendrado respeito? Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob o olhar espantado do aprendiz que, por um momento, deixou a "mão" descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer.
Por fim, achou ao fundo, bem no fundo, o quartinho que lhe servia para exames médicos mais detidos ou para as pequenas operações, porque Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a expor:
— Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um nome respeitado no mundo sábio...
— Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos meus amigos.
— Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária. . .
Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois continuou:
— Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao mundo sábio, compreende?
— Perfeitamente.
— Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem um atestado em forma, para resguardar a prioridade da minha invenção...
O senhor sabe: há acontecimentos imprevistos e...
— Certamente! Não há dúvida!
— Imagine o senhor que se trata de fazer ouro...
— Como? O quê? fez Bastos, arregalando os olhos.
— Sim! Ouro! disse, com firmeza, Flamel.
— Como?
— O senhor saberá, disse o químico secamente. A questão do momento são as pessoas que devem assistir à experiência, não acha?
— Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados, porquanto...
— Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas, o Senhor Bastos fará o favor de indicar-me.
O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus conhecimentos e, ao fim de uns três minutos, perguntou:
— O Coronel Bentes lhe serve? Conhece?
— Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui.
— Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto.
— E religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel logo, porque temos que lidar com ossos de defunto e só estes servem...
— Qual! E quase ateu...
— Bem! Aceito. E o outro?
Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua memória...
Por fim, falou:
— Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece?
— Como já lhe disse...
— E verdade. E homem de confiança, sério, mas...
— Que é que tem?
— E maçom.
— Melhor.
— E quando é?
— Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir à experiência e espero que não me recusarão as suas firmas para autenticar a minha descoberta.
— Está tratado.
Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígios ou explicação para o seu desaparecimento.
Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.
O único crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara.
Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a verificar nela um dos repugnantes crimes de que se tem memória! Não se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não era o assassinato de uma família inteira ou um assalto à coletoria; era cousa pior, sacrílega aos olhos de todas as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do "Sossego", do seu cemitério, do seu campo-santo.
Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia espalhou-se pela cidade.
A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades. A religião da morte precede todas e certamente será a última a morrer nas consciências. Contra a prolanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar—os bíblicos, como lhes chama o povo; clamava o Agrimensol Nicolau, antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o Major Camanho, presidente da Loja Nova Esperança; clamavam o turco Miguel Abudala, negociante de armarinho, e o cético Belmiro, antigo estudante, que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas. A própria filha do engenheiro residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais, sempre esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la —, a linda e desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror que tal ato provocara em todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas calçadas do Rio?
Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e onipotente, de que ela também se sentia escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua linda caveirinha para a paz eterna do cemitério. Aí Cora queria os seus ossos sossegados, quietos e comodamente descansando num caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne encanto e prazer dos vermes...
O mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de fundo, imprecando, bramindo, gritando: "Na estória do crime, dizia ele, já bastante rica de fatos repugnantes, como sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do 'Sossego'. " E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança...
O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso.
Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos.
Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar dous dos vampiros. A raiva e a indignação, até aí sopitadas no animo deles, não se contiveram mais e deram tanta bordoada nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.
A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã, se tratou de estabelecer a identidade dos dous malfeitores, foi diante da população inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e o Coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro e 0 companheiro que fugira era 0 farmacêutico.
Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a cousa não fosse verdade!
Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles!
O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios de consegui-la.
Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que no ano passado conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos do sitiante Marques, que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto, pensou logo no prado verde do Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...
Às necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dous ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.
A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que ficassem na praça, à espera do homem que tinha o segredo de todo um Potosi. Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão uma pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. "Queremos já sabê-lo," gritaram.
Ele então explicou que era preciso redigir a receita, indicar a marcha do processo, os reativos—trabalho longo que só poderia ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado.
Docilmente, com aquela doçura particular às multidões furiosas, cada qual se encaminhou para casa, tendo na cabeça um único pensamento: arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que pudesse.
O sucesso chegou à casa do engenheiro residente da estrada de ferro. Ao jantar, não se falou em outra cousa. O doutor concatenou o que ainda sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era alquimia, cousa morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto, fosfato de cal.
Pensar que se podia fazer de uma cousa outra era "besteira". Cora aproveitou o caso para rir-se petropolimente da crueldade daqueles botocudos; mas sua mãe, Dona Emilia, tinha fé que a cousa era possível.
À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e lá foi também. E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada ao filho, saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas, os criados — toda a população, sob a luz das estrelas assombradas, correu ao satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém faltou. O mais rico e o mais pobre lá estavam. Era o turco Miguel, era o professor Pelino, o doutor Jerônimo, o Major Camanho, Cora, a linda e deslumbrante Cora, com os seus lindos dedos de alabastro, revolvia a sânie das sepulturas, arrancava as carnes, ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos em lama fedorenta...
A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre as famílias questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram. Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de onze anos, até aconselhou ao pai: "Papai vamos aonde está mamãe; ela era tão gorda..."
De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro.

Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber sentado na margem do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito — ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram, mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel eterno das estrelas.

LIMA BARRETO



sexta-feira, 16 de agosto de 2013

ATIVIDADE GRAMATICAL - TRANSITIVIDADE E COMPLEMENTO VERBAL

TRANSITIVIDADE VERBAL: OBJETO DIRETO E OBJETO INDIRETO


Verbo intransitivo: é aquele que não pede complemento para estabelecer sentido.

Verbo transitivo direto: é aquele que pede complemento sem preposição, ou seja, pede objeto direto.

Objeto direto: é o complemento do verbo transitivo direto.

Verbo transitivo indireto: é aquele que pede complemento iniciado com preposição, ou seja, pede objeto indireto.

Objeto indireto: é o complemento do verbo transitivo indireto.


Os verbos que pedem dois complementos, objeto direto e indireto, são chamados de verbos transitivos diretos e indiretos.


O predicado verbal pode estar assim estruturado:


Verbos quanto à predicação


Complementos verbais

Intransitivos


--------

Transitivos diretos

+

objeto direto

Transitivos indiretos

+

objeto indireto

Transitivos diretos e indiretos

+

objeto direto e indireto


REVISÃO

Preposição: é a palavra que liga duas outras palavras, de tal forma que a segunda fica subordinada à primeira, isto é, a segunda palavra completa ou modifica a primeira.

As preposições essenciais da língua portuguesa são: a, ante, após, até, com, contra, de, desde, em, entre, para, perante, por, sem, sob, sobre, trás. Elas nunca aparecem sozinhas no discurso, pois não possuem independência: sua função é sempre a de estabelecer relações.


ATIVIDADES


1) Forme orações com elementos fornecidos em cada um dos itens. Flexione os verbos, acrescentando preposições sempre que necessário para formar frases bem estruturadas.


a) Pensar / você / durante as férias.

b) Noticiar / os jornais / o aumento dos preços.

c) Concordar / todos / o aumento das mensalidades.

d) Precisar / eu e meus amigos / conselhos realistas.


2) Identifique, nas orações que você estruturou, se aparecem objetos diretos ou indiretos.


3) Responda, empregando objetos diretos ou indiretos, de acordo com o verbo que aparece na pergunta. Depois, grife e classifique os complementos utilizados nas respostas.


a) De que filme você mais gosta?

b) Em quem você mais confia?

c) O que você guardou na gaveta?

d) A quem você se referia durante a aula?


4) Identifique os objetos diretos e indiretos nas orações a seguir.


a) Meu irmão pediu um grande favor a seu amigo.

b) Entreguei flores a todos os convidados.

c) Os amigos de Alberto ofereceram apoio e afeto ao pobre garoto.

d) Nem todos saberiam enfrentar uma situação tão complicada.


5) Leia as orações a seguir e grife todos os verbos. Depois classifique-os quanto à transitividade e seus objetos. Faça como no modelo.


Modelo: Paulinho ganhou o campeonato.

R: ganhou (verbo transitivo direto); o campeonato (objeto direto)


a) Os pais abraçaram os filhos.

b) Condenaram o réu.

c) O pintor dedicou o quadro à irmã.

d) A notícia não agradou os alunos.

e) O diretor dirigiu a palavra aos pais.



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GABARITO


1) Sugestões: a) Pensei em você durante as férias. / b) Os jornais noticiaram o aumento dos preços. / c) Todos concordaram com o aumento das mensalidades. / d) Eu e meus amigos precisamos de conselhos realistas. 


2) Nas orações a), c) e d) aparecem objetos indiretos: a) em você, c) com o aumento das mensalidades, d) de conselhos realistas; Na oração b) aparece objeto direto: b) o aumento dos preços.


3) sugestões: a) Gosto de filmes. (Objeto indireto)/ b) Confio em Deus. (Objeto indireto); c) Guardei livros. (Objeto direto); d) Eu me referia à professora. (Objeto indireto).


4) a) um grande favor (objeto direto); a seu amigo (objeto indireto)

b) flores (objeto direto); a todos os convidados (objeto indireto)

c) apoio e afeto (objeto direto); ao pobre garoto (objeto indireto)

d) uma situação tão complicada (objeto direto).


5) a) Os pais abraçaram os filhos. VTD / os filhos (OD)

b) Condenaram o réu. VTD / o réu (OD)

c) O pintor dedicou o quadro à irmã. VTDI / o quadro (OD); à irmã (OI)

d) A notícia não agradou os alunos. VTD / os alunos (OD)

e) O diretor dirigiu a palavra aos pais. VTDI / a palavra (OD); aos pais (OI)


FONTE: DELMANTO, Dileta; CASTRO, Maria da Conceição. Português: ideias e linguagens. 12. ed. São Paulo: saraiva, 2009. (adaptado)